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As memórias do Atlântico presente em Cidade do Pecado

Por Isabela Rodrigues

Publicado em 30 de outubro de 2025

Introdução

“Ancestralidade” é mais que um passado, é uma presença viva. É o elo entre vozes antigas e sons de agora, onde o amor, o afeto e a autenticidade se tornam herança. E poucas expressões traduzem isso tão bem quanto o crioulo cabo-verdiano, uma língua nascida do encontro forçado entre povos, mas que hoje representa resistência, identidade e cultura viva.

Recentemente, ele ganhou espaço em solo brasileiro através da voz de Mayra Andrade, cantora cabo-verdiana que participa do feat com o rapper BK’ em “Cidade do Pecado”. Esse encontro musical não é só arte: é memória, é afirmação de uma herança que ultrapassa o Atlântico. Neste artigo iremos entender a origem, resistência linguística e cultural, o crioulo na diáspora e no mundo, e o seu futuro e ancestralidade em voz viva.

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Cidade do Pecado

BK'

Origens: a formação de uma língua no Atlântico

O arquipélago de Cabo Verde foi colonizado pelos portugueses no ano de 1456, em pleno auge das navegações e do tráfico transatlântico de escravizados. As ilhas estavam desabitadas, e logo se transformaram em ponto estratégico para o
comércio, em especial para o envio de africanos escravizados para as Américas.

Nesse cenário de encontros forçados entre colonizadores europeus e povos africanos de diversas etnias e línguas, nasceu o crioulo cabo verdiano — um idioma novo, fruto da necessidade de comunicação entre grupos em condições de extrema desigualdade.

Desde cedo, cada ilha de Cabo Verde moldou sua própria variante, criando diferenças marcantes entre os dialetos do Sotavento (Santiago, Fogo, Brava) e do Barlavento (São Vicente, Santo Antão, Sal, Boa Vista, São Nicolau). Estudos de
Marlyse Baptista sobre o sintagma nominal mostram como essas variantes apresentam distinções na formação de plurais, artigos e concordâncias, revelando que não existe um único crioulo, mas sim uma constelação de crioulos interligados
pela mesma raiz.

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Resistência linguística e cultural

Durante séculos, o crioulo foi proposto ao espaço doméstico e popular, enquanto o português se consolidou como língua oficial e de prestígio. Essa situação de diglossia, onde uma língua é vista como “superior” e outra como “inferior” — marcou profundamente a história de Cabo Verde. No entanto, o crioulo nunca deixou de ser falado: foi a língua do afeto, das ruas, das canções e das narrativas orais dos oprimidos.

No campo cultural, a língua foi sendo eternizada em sons e ritmos. A morna, gênero imortalizado por Cesária Évora, e estilos como a coladeira, o funaná e o batuque carregam o crioulo como essência. Pesquisas de Carla D. Martin mostram como a música tornou-se uma arena de resistência linguística: ao cantar em crioulo, artistas reafirmaram que a identidade cabo-verdiana não se limita ao português e que a ancestralidade também se faz presente na sonoridade cotidiana, algo que com o passar do tempo foi quase extinto.

O crioulo na diáspora e no mundo

Mesmo em contextos de assimilação cultural, o idioma resistiu como elo entre as famílias e marca de identidade coletiva. Nesse contexto, o crioulo encontrou na arte um veículo de sobrevivência.

 

Cantoras como Sara Tavares e Mayra Andrade, vivendo fora do arquipélago, usam o idioma em suas canções, mantendo viva a ligação entre memória e presente.

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Um exemplo emblemático dessa presença contemporânea é a colaboração justamente de Mayra Andrade com o rapper BK’ no EP “Cidade do Pecado” (2021). Na canção ‘’Paraíso que me cerca’’ a artista no trecho a seguir:

‘’Lembra, lembra, lembra
A beleza está na essência
Julgamento é chumbo na asa de um pardal
Pedra no caminho de um menino, de um menino
Só um segundo para lembrar-te
Ser livre é estar mais perto, perto, perto de Deus que está em ti’’

Compartilha a lógica de ressignificação da vida cotidiana, espiritualidade e liberdade interior. Notamos essa presença lírica e profunda nos seguintes trechos:


1 - O verso “A beleza está na essência” traz o núcleo da canção: a ideia de que o verdadeiro paraíso não é externo, não é físico, mas interno. Aqui o criolo propõe enxergar beleza e sacralidade mesmo no cenário urbano, nas pequenas coisas, nas pessoas comuns. É uma recusa da superficialidade em favor de um olhar profundo para a existência. 

2 - O peso do julgamento

Já na seguinte linha “Julgamento é chumbo na asa de um pardal” remete àquilo que prende e limita. Na música, o artista fala sobre resistir às opressões e desigualdades, mas também sobre não deixar que o peso do olhar alheio nos roube
o voo — a liberdade de ser. O julgamento social aparece como obstáculo, e o paraíso, como estado de leveza e libertação.

3. O caminho e a infância
“Pedra no caminho de um menino” evoca tanto o crescimento em meio às adversidades quanto a inocência que ainda se choca contra barreiras. Nesse contexto, o Crilo se une às imagens do cotidiano periférico para mostrar como a dureza da vida não apaga a possibilidade do sagrado — pelo contrário, o fortalece.

4 - Liberdade e transcendência
O final — “Ser livre é estar mais perto de Deus que está em ti” — conecta-se ao coração da música. O paraíso não é geográfico, mas espiritual e existencial. É a presença divina percebida dentro de si, mesmo em cenários de dor e injustiça.
Criolo sugere que o paraíso é acessível no instante em que se reconhece a própria essência e dignidade.

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Futuro e ancestralidade em voz viva

O futuro do crioulo cabo-verdiano é, ao mesmo tempo, desafio e promessa. Desafio porque ainda precisa conquistar espaço no ensino formal, nas políticas públicas e nos documentos oficiais. Promessa porque a língua já vive na boca de milhões,
circulando em músicas, redes sociais, literatura e no cotidiano de quem insiste em mantê-la viva.

A tradução recente da Constituição da República de Cabo Verde para o crioulo de Santiago, anunciada como parte das comemorações dos 50 anos da independência, é um exemplo simbólico da valorização crescente do idioma (Africa Press, 2024). Trata-se de reconhecer que o crioulo não é apenas língua popular, mas também instrumento legítimo de cidadania. Assim, o crioulo cabo-verdiano segue como herança viva da ancestralidade africana no Atlântico.

 

É o “A” de Ancestralidade, mas também o “A” de Amor, Afeto e Autenticidade. Sua resistência mostra que uma língua pode nascer em meio ao sofrimento, mas se transformar em fonte de orgulho e poesia.

 

Como lembra Carla Martin (2016), cantar em crioulo é afirmar que a memória não morre — ela reinventa o presente.

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Isabela Rodrigues

Design gráfico e criadora de conteúdo,Isa é apaixonada por música, arte e cultura, dentro do RAP Nacional.

Ela acredita que o RAP é a peça fundamental para a educação e criação do senso crítico.

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