
Fallujah por Gutierrez
Por guílerme
Publicado em 14 de Outubro de 2025
Intro
Nicholas Berg foi um empresário estadunidense que, em 2004, durante uma viagem de negócios a Bagdá, capital do Iraque, foi capturado por um grupo de iraquianos radicalizados em represália aos abusos cometidos pelos Estados Unidos no país. Após a captura, Nicholas foi levado a um cativeiro, onde, depois de fazer uma declaração de identificação, foi decapitado.
O vídeo foi divulgado pela primeira vez em maio de 2004, um ano e dois meses após a invasão americana no Iraque. Sete meses depois, parte do áudio da execução foi usada como introdução da faixa Fallujah, do rapper carioca Gutierrez.
Desde as mentiras contadas por George.W Bush e seus comandados, passando pelos atentados de 11 de setembro, até os abusos cometidos na prisão de Abu Ghraib, na música Fallujah, Gutierrez traz um recorte visceral da sádica atuação estadunidense no Oriente Médio, em especial no Iraque. Pela perspectiva de um repórter de guerra, Gutierrez mostra o cenário de devastação de terras iraquianas e denuncia a invasão americana.
Este é só um recorte: um olhar sobre a invasão ao Iraque e o ambiente que fez nascer os versos de Fallujah.

Prelúdio e invasão.
Após os atentados de 11 de setembro, o então presidente George W. Bush, em 2002, discursava sobre as medidas que seriam tomadas para combater aquilo que ele batizou de “Eixo do Mal”. Esse eixo seria formado por países — Irã, Coreia do Norte e Iraque — que, sob a visão estadunidense, abrigavam forças terroristas. Durante a Assembleia Geral da ONU, em setembro de 2002, Bush afirmou que o Iraque estaria produzindo armas de destruição em massa.
No ponto de vista ianque, além da suposta produção dessas armas, o Iraque também mantinha ligações com a Al-Qaeda — responsável pelos atentados de 11 de setembro —, e Saddam Hussein, ditador do país, representava uma ameaça à paz na região.
A visão negativa que os Estados Unidos possuíam de Saddam Hussein já vinha sendo construída desde a Guerra do Golfo, quando o ditador tentou, sem êxito, anexar o Kuwait — país vizinho e detentor de grandes reservas de petróleo. Os planos de Saddam foram frustrados após uma coalizão formada pelos EUA e outros membros da ONU derrotá-lo, deixando cerca de 26 mil soldados iraquianos mortos, além de três mil civis.
Com o fim da guerra, o Iraque foi dividido e submetido a uma série de imposições. Entre elas, a Resolução 687 do Conselho de Segurança da ONU, que determinava inspeções regulares para avaliar o potencial bélico do país. Saddam, no entanto, ignorou as exigências e se recusou a autorizar as visitas da ONU, encarando-as como uma ameaça à soberania iraquiana.

Mesmo com a invasão americana sendo o principal ponto deste texto e da música, é bom deixar bem claro que Saddam também era um ditador sádico, que perseguia e massacrava seus opositores. Inclusive, foi um dos responsáveis por uma grande tragédia que veremos no segundo verso.
Somente em novembro de 2002 o regime permitiu que os inspetores entrassem em suas instalações — e o resultado foi claro: não havia evidências da produção de armas de destruição em massa.
Mesmo assim, em março de 2003, os EUA anunciaram uma nova coalizão, formada por mais 35 países, com o objetivo declarado de “incapacitar o arsenal de Saddam Hussein e garantir a liberdade do povo iraquiano”. Durante a invasão, Saddam foi capturado e meses depois e levado a julgamento.
Recortes, Primeiro Verso.
Diretamente de Fallujah
Como um repórter clandestino fui de burka
Vi um povo humilhado com as mãos na nuca
Meu coração sofreu convulsão, minha mente encheu de perguntas
O poder transforma o ser humano em um belo 'dum' filho da puta
Em 2004, chegaram à grande mídia dezenas de vídeos e fotos que mostravam prisioneiros iraquianos sendo torturados por soldados americanos na prisão de Abu Ghraib, em Bagdá. Antes utilizada como centro de detenção e tortura de inimigos políticos de Saddam Hussein, a prisão agora se tornava palco de novas barbáries — desta vez, cometidas pelas mãos daqueles que diziam levar liberdade ao povo iraquiano.
Ainda no primeiro verso, Gutierrez começa a dar nome aos bois. A primeira é Condoleezza Rice, nomeada por Bush como secretária de Estado dos EUA e uma das mais ferrenhas defensoras da invasão ao Iraque.
Em segundo Colin Powell: antes de Condoleezza, Powell também foi nomeado como secretário de Estado dos EUA. Em uma clara demonstração da mais suja cara de pau, em 2003 o Secretário discursou na ONU e em umas das melhores (nesse caso, piores) atuações da história, mentiu ao mundo todo ao afirmar que o Iraque teria armas de destruição em massa.
Por último, e mais importante — agora mais do que nunca —: Tony Blair, primeiro-ministro do Reino Unido. Antes da invasão de 2003, um ano antes, Tony Blair havia divulgado um dossiê sobre a suposta ameaça representada pelas armas de Saddam. Contudo, o documento, apresentado ao público britânico, omitia informações relevantes levantadas pelo MI6 (Serviço de Inteligência Britânico voltado para o exterior), que questionavam os dados sobre o poderio iraquiano.


Recortes, Segundo Verso.
Permaneço venenoso como Ali Hassan, o Ali Químico
O gás sarín das minhas rimas atinge o Tio Sam cínico
Já posso ver a Estátua da fingida Liberdade explodindo
Vejo escombros da Casa Branca e o aplauso dos subnutridos
O rapper inicia o segundo verso nomeando agora um iraquiano: Ali Hassan. Tão perverso quanto Saddam e quanto a presença americana no Iraque, Ali foi responsável pelo genocídio curdo em 1988, utilizando gás venenoso. Gutierrez ainda faz referência ao discurso de Michael Moore, cineasta americano, durante o Oscar, no qual o diretor denunciou a tirania e as mentiras da Doutrina Bush.
Tiraram o "Allah-U-Akbar" da bandeira do Iraque
Eles não querem só o mundo, eles querem a Lua e Marte
Eu vou publicar seus segredos mermo que seja tarde
Te atacarei como Michael Moore no Oscar e no Fahreinheit
Em um dos versos que mais enfatizam as barbáries americanas, há uma citação direta a Donald Rumsfeld, Secretário de Defesa do governo Bus. Ainda nesse verso, Gutierrez denuncia as atrocidades cometidas pelos comandados de Rumsfeld — entre eles, Lynndie England, uma sádica militar americana responsável por sessões de tortura e pelas condições desumanas às quais prisioneiros iraquianos foram submetidos na prisão de Abu Ghraib.
Dizem atacar milícias mas na realidade matam ativistas
Colonizam o mundo como bárbaros vestidos de santos imperialistas
Todos sabem que Rumsfeld autorizou a tortura de presos
Agressões, estupros e a soldado Lynndie pisando em seus dedos

A importância de Fallujah.
Desde sempre somos bombardeados por propagandas e agendas positivas dos Estados Unidos, o que torna cada vez mais difícil perceber o caos espalhado pelos ianques ao redor do mundo. No rap, essa separação entre o entretenimento enviesado produzido pelos EUA e o impacto negativo de suas políticas globais torna-se ainda mais difícil de se consolidar, devido à cooptação do movimento Hip Hop pela indústria do entretenimento.
Quando tudo se transforma em espetáculo, o senso crítico se esvazia. É por isso que Fallujah atua como um colírio para os olhos embaçados diante do conflito entre entretenimento e vida real
O Hip Hop, embora tenha se desenvolvido inicialmente no Bronx, tem suas raízes na Jamaica — um país do chamado Terceiro Mundo que, assim como o Iraque e tantos outros, também sofreu sob as garras do imperialismo.
De Racionais a Public Enemy, por meio de um de seus pilares — o rap —, o movimento Hip Hop nos apresentou uma visão crítica sobre a forma como vivemos em sociedade e como seus preconceitos, padrões e mecanismos são capazes de promover a opressão sistêmica de povos periféricos.
Com o passar do tempo, a proposta de união e consciência dentro do Hip Hop se enfraqueceu. Movido principalmente pelo dinheiro e por tudo o que ele traz, o rap foi, aos poucos, perdendo o tom crítico que possuía — e que deveria preservar.

Por isso, Fallujah é tão importante. A música representa, de forma agressiva, uma mensagem difícil de digerir, mas extremamente necessária para a formação do senso crítico idealizado pelo Hip Hop. Gutierrez não apenas rima — ele nos confronta. Sua voz de tom grave e única faz com que a mensagem soe ainda mais cortante e indigesta, como deve ser.

Hoje, a faixa soa mais atual do que nunca. Quantas Fallujahs os Estados Unidos já criaram — e continuam criando — pelo mundo? Quantas Abu Ghraib ainda estão ativas? Quantas sessões de tortura, endossadas pelos gabinetes da Casa Branca e pela “inteligência” da CIA, ainda acontecem em lugares como Guantánamo?
Mais do que chocar o ouvinte, Gutierrez o provoca a se questionar sobre o funcionamento do imperialismo americano.
Por fim, o último verso da música nos oferece um panorama atual da situação brasileira. Estamos cansados de ver manifestações que supostamente agem em prol do país, mas que, ao mesmo tempo, levam em suas linhas de frente bandeiras dos EUA — isso quando não prestam continência a elas.
Iraquianos que ajudam Bush pra mim não passam de frouxos
Porque se a invasão fosse aqui no Brasil, eu lutaria como um louco
Usaria táticas de Marighella, e a inteligência de Chico em Estorvo
E escreveria Brasil com "S" no corpo de cada invasor morto,
George…
Pra descontrair
O finado e histórico sketch show Chappelle’s Show, de Dave Chappelle, foi contemporâneo da invasão do Iraque. Com um senso de humor irônico e beirando ao ridículo (ou nem tanto), Dave apresenta uma versão de si mesmo como presidente dos EUA: o Black Bush.
Além de Chappelle interpretando Bush, temos Jamie Foxx como Tony Blair (já citado aqui anteriormente) e Mos Def como um dos membros da C.I.A.
Por motivos de copyright (PAGA NÓIS), não podemos traduzir aqui o vídeo completo dessa sketch, mas deixarei o link para que você possa dar algumas risadas.
P.S.: “O cara fez um texto inteiro falando sobre a influência do imperialismo americano e, no fim, deixou um vídeo em inglês como referência??” Sim!
Mas foi você que, por livre e espontânea vontade, escolheu ler um texto escrito por um ex-estudante de contabilidade falando sobre rap e imperialismo americano!

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